domingo, 2 de maio de 2010

A Negra Li é Nossa !



A paulistana de jeito calmo e olhar sereno é fera quando se trata de passar a mensagem por meio do hip-hop. Compositora, cantora e atriz, ela vive agora um dos melhores papéis na vida: ser mãe.

Nascida na Vila Brasilândia, um dos bairros mais violentos da zona norte, Liliane de Carvalho galgou com cuidado os degraus que a levaram ao sucesso no hip-hop. Vem de menina o dom de traduzir em palavras o pensamento e a indignação, e tem o olhar cada vez mais vivo para o mundo que a cerca. Neste bate-papo com a REVISTA CIRCUITO, ela fala da maternidade, da referência materna e da música – sua paixão.

Como você descobriu a Granja Viana?
Negra Li – Na verdade, vim mudando de bairro até chegar à Granja. Sou da zona norte, da Vila Brasilândia e, em 2006, decidi morar sozinha. Vivi em um apartamento no Peri Peri e gostei da vizinhança. Depois, fui para uma casa no Butantã. Mas, quando fui procurar um lugar para comprar, descobri a Granja! Aqui tinha o valor que eu poderia pagar. Não teria condições de morar em uma casa como esta em São Paulo, seria muito mais caro. Além disso, aqui tenho qualidade de vida! Eu procurei sossego. Na casa onde eu morava, às vezes, dava até medo. De madrugada, pessoas passavam por lá com o som superalto para chamar a minha atenção, tocando música que eu cantava.

Era um assédio, então?
Negra Li – Era sim. As crianças passavam na rua e gritavam meu nome. Às vezes, eu estava ensaiando e eles queriam que eu fosse até o portão. Mas as crianças eram o de menos. O problema eram os grandões, de madrugada, chamando a minha atenção. Confesso que isso me dava um pouco de medo, atrapalhava meu sono... isso porque uma hora pode ser só brincadeira, mas noutra pode ser sério. Então, decidi que precisava de um lugar tranquilo.

E você encontrou aqui o que procurava? Você consegue curtir a Granja?
Negra Li – Aqui na Granja é bem mais tranquilo. Você fi ca conhecendo as pessoas, como o moço do coco, aonde vou às vezes comprar água de coco. Ou os frentistas do posto de gasolina, com quem a gente fez amizade. Vou ao mercado, ao centrinho da Granja, faço tudo.



E sua filha, Sofia, está com quantos meses?
Negra Li – Ela tem 7 meses. A Granja Viana foi o melhor lugar para tê-la. Ela é uma granjeirinha (risos). Vivo falando para ela:
“Olha, você tem de agradecer a Deus!” Sofia nasceu quando eu tinha 29 anos (ela completa 31 de setembro). Para você ter uma ideia, com essa idade minha mãe já estava na quinta gestação. Sou a mais nova de cinco filhos dela.

E como foi a maternidade para você? Você sempre quis ter filhos?
Negra Li – Eu sempre quis ser mãe, e esperei o momento certo. A Sofi a foi planejada. Não tirei um tempo da vida profi ssional para ficar com minha filha, mas as coisas foram se encaixando. Tudo foi acontecendo para que desse certo. Trabalhei muito quando ela era novinha. A partir de 2 meses, ela já viajava comigo de avião, com a permissão da médica. Ela liberou por achar superimportante que Sofi a fosse alimentada com o leite materno. Então eu a levo comigo para o show para amamentar. Até os 6 meses, foi só leite. A partir daí, comecei a introduzir a papinha.

Você esteve na Alemanha, há pouco tempo, para a estreia do filme Antonia (dirigido por Tata Amaral). Sua filha foi com você?
Negra Li – Ela e meu marido foram juntos. Tiramos o passaporte dela e a levamos. Quando ela voltou, por causa da mudança do tempo, pegou um vírus. Mas, graças a Deus, já está recuperada.

Você canta muito para ela?
Negra Li – Ah, claro! Em todos os momentos tem muita música. O pai dela, principalmente. A cada hora tem uma canção. Ele está sempre inventando, fazendo rima. Ela é, com certeza, uma fonte de inspiração.

Fale um pouco sobre sua trajetória. Você levou um tempo para gravar, mesmo recebendo convites, escolheu o que seria melhor. Você sempre foi assim, madura?
Negra Li – Nossa, madura até demais! Quando eu tinha 20 e poucos anos, uma gravadora queria me dar 200 mil reais para gravar. Eu tinha só 22, 23 anos. Que menina, nessa idade, não quer um dinheiro desses?! (risos). Quem iria falar não para uma coisa dessas? E eu disse não! Eu tinha a cabeça um pouco fechada. O movimento hip-hop tinha aquela coisa de revolta com o sistema, com tudo... com a política, com a diferença social. Então, nós somos mais carrancudos. Hoje em dia, menos até. O hip-hop no Brasil já fi cou um pouco mais forte, fala de amor, de outras coisas. Mas, de fato, quando eu entrei, em 1996, era muito sério, sempre falando de assuntos sérios: violência, dificuldades. A Xuxa me chamou para ir ao programa dela, o Planeta Xuxa, e eu recusei. Tinha medo do novo. Até então, eu só vivia naquele meio do rap, naqueles shows. E também tinha medo dos comentários das pessoas, do público do rap. Eles poderiam falar que eu estava vendida. Quando ela me chamou, era para ir com (a banda) Charlie Brown Jr. E pensei: “Poxa, vou lá cantar rock?” Eu estava com muito medo das críticas, do que iam pensar, falar. Acho que, nessa época, o “não” era mais pela ignorância de não saber exatamente o porquê de não aceitar. Mas agora não, de uns tempos para cá eu escolho realmente o que é melhor para mim.

De onde veio o apelido Negra Li?
Negra Li – No hip-hop é comum ter esse tipo de nome, como uma afirmação do negro. No Rio de Janeiro, por exemplo, tem a Nega Gizza. Então, como meu nome é Liliane, ficou Negra Li.




E quem são seus ídolos na vida e na música?
Negra Li – O pessoal fala que é clichê, mas o meu maior ídolo é minha mãe. Ela sempre foi uma pessoa que me inspirou muito. Ela sempre foi uma guerreira. Eu sempre a vi batalhando, nos alimentando, era ela que colocava dinheiro em casa. Meu pai, que faleceu em 99, era dono de um bar. Ele tinha um bar que ficava no quintal da nossa casa, na Vila Brasilândia. Mas quem botava a grana em casa, sustentava a família, era a minha mãe, a dona Neusa. Além dela, na música gosto muito do Bob Marley, uma referência muito bacana, pelas mensagens das canções. E da Lauryn Hill. Eu dei uma pesquisada, e parece que ela deu uma sumida. Ela se revoltou contra o sistema. No mundo da música a gente sabe que tem muita coisa, o dinheiro corrompe as pessoas. Quem está pela música, pela arte, pela mensagem que quer passar e acredita em Deus, acaba se revoltando mesmo com essas coisas. Eu ainda não tenho condições de me revoltar (risos). Eu ainda tenho de saber levar!

E como sua mãe vê sua carreira?
Negra Li – Ah, ela adora! Desde o início, ela é minha fã número 1. Minha mãe sempre gostou. Meu pai achava que não ia dar em nada...

Do que você se arrepende de não ter feito nesses anos de carreira?
Negra Li – A proposta da gravadora. Não pelo dinheiro... mas penso que, se tivesse feito, de repente teria mais discos lançados, uma história maior, um espaço melhor.

Como você define seu momento de carreira hoje?
Negra Li – Estou superamadurecida. Sou eu quem decide tudo, eu me sinto livre! Meu CD, Negra Livre, não foi à toa. Veio como título da música do Nando Reis, só que eu realmente me sinto livre. Não tenho mais aquele medo do que vão falar de mim! Livre é o jeito que me sinto hoje, satisfeita com minhas coisas. Fiz um contrato mais ou menos do jeito que eu quero, estou livre para fazer minhas coisas do jeito que eu quero, do jeito que eu gosto. Trabalho com quem eu quero e confio. Nesta época estou assim, dona do meu nariz!

E na vida pessoal, como define este momento?
Negra Li – Minha vida pessoal é um sonho, porque sempre quis construir uma família, e estou começando isso agora. É muito gostoso poder curtir minha fi lha, meu marido, ter minha casa... é muito gostoso, nos fins de semana, ir visitar a vovó, viver esse sonho que todo mundo quer. E como é sua rotina? Você consegue estabelecer horários? Negra Li – Consigo, ainda mais agora com a Sofi a! Aliás, o que não me falta é rotina. Bom, no meu trabalho é impossível ter rotina, mas na vida pessoal, sim. Por causa da minha fi lha, tudo mudou, tem horários. Quase não durmo direito por causa dos shows e, muitas vezes, chego de madrugada. Mas quando ela desperta, às 6 da manhã, e quer mamar, eu acordo para amamentá-la. Durante a semana conto com a ajuda de uma pessoa, mas nos fi ns de semana não. Acordo todos os dias com ela, desço e faço a papinha, para quando ela quiser almoçar já estar pronta. Sofia tem o horário certinho de almoçar, tem o dia da natação...

E você pensa em ter outros filhos?
Negra Li – Com certeza, pelo menos mais um! Eu penso em quanto adoro ter irmãos, e que minha filha também vai gostar.



Fale um pouquinho do seu marido, o Junior Dread. Como rola essa parceria?
Negra Li – É muito bacana, pois ele é músico também. A gente se ajuda para escrever música e nas opiniões sobre o trabalho um do outro. A gente sempre pede “ouve aí, ta legal?”. Ele canta nos meus shows, toca guitarra e violão.

Você tem, na família, outras pessoas ligadas à música?
Negra Li – O meu irmão Gilson é ligado ao samba. Ele é produtor, trabalha com cinema, propaganda e já chegou a fazer parte de um grupo que quase se tornou famoso (risos). Ele participou de uma competição musical e acabou indo para a final. A decisão ficou entre o grupo do meu irmão e o Katinguelê, que ganhou. Acho que o nome do grupo do Gilson era Caxambu. Mas meus irmãos me inspiraram. Um irmão que não tinha nada a ver com a música, mas era o único que tinha dinheiro para comprar CDs, foi quem levou para casa Racionais MC, por isso eu comecei a ouvir, graças ao meu irmão que não é da música, mas que trabalhava como office-boy e me trazia as novidades.

E como é o processo de composição das letras?
Negra Li – Depende da época. Comigo é assim: chega um período em que vem muita inspiração, escrevo muito, faço várias músicas. Começo com o refrão e depois sigo em frente. Depois chega uma época em que para, dá um tempo. E eu sou assim: se eu não gostar, vai ser jogado fora. Então, tudo o que escrevo eu uso, a não ser músicas que fiz quando tinha 12 anos. Componho desde muito nova. Na verdade, comecei com as redações na escola. Minhas redações eram muito elogiadas. E daí eu vi que tinha o dom de escrever letras. Eu faço uma coisa para gostar: vou rabiscando até chegar às palavras certas. Isso envolve muito trabalho. Música que vem com inspiração, nossa! Se eu pudesse, faria todos os dias! Tem uma música que eu canto que se chama Tão Bom pra Mim, que eu fiz na casa de uma amiga, que há pouco tempo faleceu. Olhando pela janelinha da casa dela, comecei a fazer toda a descrição... “Quando olho pro céu e vejo a imensidão do azul, me banho com a luz, eu sinto a brisa suave da manhã...”

E a Granja Viana, inspira você?
Negra Li – Já compus aqui, sim, mas não muito, pois faz pouco tempo que me mudei. Na última leva de composição que veio, ainda estava na outra casa.

Você tem noção da importância da sua imagem para as adolescentes negras do Brasil?
Negra Li – Eu não tinha. Na verdade, só fui ter noção desse peso quando alisei os cabelos. Muitas pessoas reclamaram. Foi aí que comecei a perceber. Eu não sabia que usar o cabelo black power, porque acho lindo, era tão importante. Eu não usava o cabelo black como forma de reafirmação, porque sou negra, e sim porque sempre achei bonito. Mas, quando eu quis mudar... quer dizer, na verdade, não foi nem porque eu queria mudar, foi um relaxamento que fiz e não deu muito certo (risos). Então o melhor foi alisar de vez. Foi aí que vi o peso e até entendi a revolta delas, porque não tem muitas cantoras assim, com cabelo natural. Comecei a ver e constatei que, realmente, são poucas. Beyoncé tem cabelo alisado, fulana tem cabelo liso...

O Brasil conhece pouco a periferia?
Negra Li – O Brasil conhece muito a periferia quando tem violência, assassinato e bandido. Ou só mostram uma coisa legal quando tem uma ação social e passam a imagem de coitadinhos. A periferia tem muito a ensinar, tem povo feliz e gente bonita.

Qual você considera que seja a maior lição que a periferia tem a ensinar?
Negra Li – Que dinheiro não traz felicidade! Você vê criança se banhando com mangueira, jogando futebol na subida, em rua cheia de pedra... elas sabem se divertir com aquilo.

Sua família ainda mora na Vila Brasilândia?
Negra Li – Ainda mora. Minha mãe ainda vive no mesmo lugar onde eu morava. Sempre vou lá. Brasilândia está na minha rota, já está salvo no GPS (risos).

O meio do rap e do hip-hop é machista?
Negra Li – Acho que não só o hiphop. O mundo é machista pra caramba! E vendo como são as coisas agora, acho que está melhorando. Minha mãe conta que meu pai não a ajudava em nada, não trocava as crianças... ele trabalhava fora. E hoje vejo meu marido fazer tudo. O trabalho dele também contribui, pois tem um tempo mais flexível, não tem aquilo de horário certinho todo dia.

E como foi sua experiência na televisão, ao fazer a minissérie Antonia.
Negra Li – Foi muito legal, uma das coisas que marcaram minha carreira! Sempre quis atuar, sempre gostei muito. E ter feito um seriado como protagonista, negra, foi muito bom. Eu achei que tinha várias coisas que iam contra (o sucesso da série), pois era na sexta-feira, 23 horas, ou seja, bem no horário em que as pessoas iam curtir a balada, após a semana de trabalho. Mas, mesmo assim, foi um sucesso! Conseguimos tornar o seriado superconhecido.

E como foi participar do lançamento do filme na Alemanha?
Negra Li – Foi muito bacana! Havia muitos brasileiros lá. Tinha gente que achava que existia mesmo o grupo, que aquilo tudo era verdade. Isso foi muito legal. Foi um trabalho que mexeu muito com a emoção. Fiz oficina de preparação de ator com o Sérgio Pena, que fez a gente buscar emoções novas. A gravação do filme durou quase um ano. Essa preparação de ator é uma coisa louca, tem horas que você não entende por que está empurrando parede, ou empurrando e pulando as pessoas. Mas você se solta, faz o que não costuma fazer... solta sua mente e a abre para uma coisa que tudo pode, algo bem de ator. Depois de Antonia, tive uma oportunidade de fazer uma participação no 400 contra 1 (filme de Caco Souza que conta a história do Comando Vermelho), que vai estrear no mês de agosto. Não vejo a hora! Estou supercuriosa, pois ainda não vi nada. Fiz uma coisa bem parecida com a Preta (de Antonia), minha personagem era bem serena, tranquila. Acho que levo muito de mim para o personagem.

Você tem religião?
Negra Li – Sou evangélica, mas não quero divulgar a igreja, não importa a placa. O que importa é o que está dentro. Sou evangélica desde criança. Minha mãe sempre foi religiosa. Tanto que fui aprender a ser vaidosa muito mais tarde. A gente aprende a ser vaidosa com a mãe, né? Desde pequena, a criança quer ver a maquiagem da mãe, os batons da mãe, essas coisas. Mas comigo foi bem diferente. Cresci com minha mãe de saia comprida, sem maquiagem. Ela é uma mulher superserena, que perdoa as pessoas, que acredita em Deus, que quer fazer o bem. Também me preocupo em levar a religião na prática.

E qual é o próximo projeto de Negra Li?
Negra Li – Vou fazer um filme independente chamado Poderoso Arco-Íris, no qual vou ser a protagonista, no papel de uma jornalista que investiga um serial killer homofóbico. O projeto é de Ayom Ayram. Farei aula de dublê, pois a academia Águias de Fogo também participa. O filme envolve ação, suspense, então vou ter uma preparação física enorme. Vai ter muita briga, muita ação. Eu faço exercícios físicos na Academia Fórmula. Não tenho nutricionista nem personal trainer, porque é muito caro! Mas tenho ótimos professores na academia. Voltei agora a fazer exercícios, estava afastada devido à gestação. Amamentar me fez perder muitos dos 18 quilos que ganhei na gravidez. Quase não tenho restrições alimentares, mas evito refrigerante. Não é uma coisa sofrida, não tomo porque dá gastrite, celulite. Mas não fico sofrendo com dietas, com nada. Os shows são muito cansativos e quase não dá para recuperar o fato de não dormir direito de madrugada.


fonte: Revista Circuito
http://www.revistacircuito.com/

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